Miguel Esteves Cardoso escreveu o prefácio para o livro "Arte de Ser Português" de Teixeira de Pascoaes, editado pela Assírio & Alvim em 1991.
Tem como título "A Arte" e começa assim:
"Quando Pascoaes inventou Portugal não se deu conta do que tinha feito: pensou que se tinha limitado a descobri-lo. Quando imaginou os Portugueses, entregando-lhes as palavras e as visões que só a ele pertenciam, enganou-se. Os Portugueses não queriam ser quem ele queria. Os Portugueses de Pascoaes nem sequer existiam. Pascoaes nunca percebeu que era tudo invenção dele.
Escreveu um livro, a Arte de Ser Português, recusando a responsabilidade da criação, na ânsia de ser apenas um espectador."
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"Pascoaes queria entrar em Portugal, como convidado dos Portugueses. Não conseguiu porque, mais que tudo, quis convencer-se que estava apenas a regressar. Nunca admitiu que era um estranho. Nunca aceitou ser o que era, um artista de coração aberto, em viagem pelo seu país, deslumbrado como só um visionário, surpreendido como só uma visita.
Pascoaes sonhava que já tinha vivido em Portugal uma vez. Que havia quem se lembrasse dele. Que existia em cada alma portuguesa uma semelhança que a mantinha junto às outras, mesmo quando as almas matavam, mesmo quando morriam. Pascoaes acreditava que esta semelhança estava na maneira de sentir, que não mudava. Não estava nos sentimentos, tão díspares e difíceis que se destruíam uns aos outros, cada vez que as pessoas tentavam entender-se ou explicar-se.
Pascoaes não era ingénuo. Nem sequer era optimista. O defeito dele não era iludir-se, porque não se iludia. O defeito dele era ouvir, ouvir tudo o que lhe diziam. Por isso ouviu muito mais do que precisava ou devia ouvir a começar pelo próprio coração, que não se calava dentro dele. Pascoaes ouvia também os gritos da multidão e os ataques dos inimigos, e prestava-lhes uma atenção doentia, tal era a vontade de compreendê-los e de concordar com eles.
Pascoaes foi um homem maior, mas nenhum homem tem grandeza para guardar um mundo inteiro dentro dele. O mundo que Pascoaes quis proteger, e a quem entregou a vida, era Portugal. Sonhava pertencer-lhe. Mas nunca lhe pertenceu. Sonhava tornar-se, como poeta e português, numa pessoa à semelhança de Portugal."
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"Faz falta querer o bem eterno de Portugal.
A vítima do livro é o autor, que continua por ler, que continua afastado dos nossos dias, que continua a bater-nos à porta, com o mesmo desejo de entrar."
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"Um dia ele há-de regressar. E não será como estrangeiro, nem como louco. Há-de voltar como sempre quis, como se já cá tivesse estado. Como um velho poeta que volta à casa antiga e vê palavras suas, treslidas e transformadas, vivas, nas mãos e nas bocas das pessoas, das más e das boas, perdidas no tempo mas espalhadas por toda a parte.
E Pascoaes terá o seu sossego e nós sossegaremos com isso."